Brincadeira sem hora
Este é mais um conto de "Fruta Doce", uma newsletter-laboratório onde cismei de experimentar o texto.
– Mainha, vem ver! Tião tá caído no chão com a boca aberta, parece até que levou um susto. Tião? Ô, Tião, você tá com medo do trem que voa?... Mãe! Tião não quer falar comigo, fica se fingindo de morto.
Brija ficou pensando que tinha raiva de Tião tratá-la sempre como se ela não soubesse nada, não entendesse de nenhuma brincadeira. Quando voltou pra casa, decidiu que ia passar pelo corguinho para molhar os pés e a cara, estava calor e ela saiu correndo pra olhar o avião, era a primeira vez que um voava tão perto e ela não sabia se ia conseguir ver de novo outra hora. Sentou na beira da água, sem molhar a roupa, enfiou os pés e encheu as mãos pra jogar no rosto.
– Tião é besta, tá perdendo essa frescurinha. Aposto que ele vai voltar pelo mato dos pé de andu pra chegar primeiro e poder caçoar quando eu tiver entrando lá em casa. Que disgrama… Essa brincadeira de ficar caído assustado eu nunca vi. Isso nem devia ser uma brincadeira, não tem graça de nada. E brincadeira sem graça não presta.
Quando achou que estava fresquinha o suficiente, Brija saiu correndo de novo pra ver qual que era a dessa vez. Se ele ficasse muito tempo caçoando dela, ia pedir pra Dona Mina ensinar ela a fazer doce de mamão verde. Aí ela ia poder fazer muito doce bom de mamão verde e não dar nada pra Tião, que era um besta.
– Uai… Ô, mainha, Tião ainda não chegou? Se ele tiver escondido a senhora me mostra.
– Escondido de que, menina? Cadê Tião?
– Uai, a gente saiu correndo pra ver o avião, mainha. Tião foi na frente, rindo, dizendo umas coisas que estando no chão ninguém morre de queda de avião.
– Que bestagem é essa, Brija?
– Sei não, mainha. A senhora não ouviu eu te chamando?
– Não, que horas?
– Na hora que Tião caiu.
– Caiu de onde?
– Uai, a gente saiu correndo, mainha. Aí ela foi pular um pedaço de lajedo que tinha lá perto do poço. Era uma pedra pequena, ele pulou de besta, podia ter só ido pro lado…
– Caiu como, Brija?
– Ele foi pular, errou o pé e tropeçou na pedra, caiu esquisito, meio de costas, meio de lado. Quando eu cheguei ele tava com a boca aberta, parecia que tinha levado um susto, eu chamei e ele ficou que nem um boboca sem falar nada.
– Cadê Tião, Brija?
– Uai, se ele não tá aqui ainda pra caçoar de mim, eu não sei.
Dona Mina levantou do sofá, largou a meia velha onde costurava um buraco e saiu parecendo uma bala, indo para os lados do poço.
– Tião! Ô, Tião! Tião, meu fi, responde, Tião!
– Que foi, mainha?
– Vai chamar seu pai, Brija! Corre lá ne doutor Alixand, ele foi levar umas garrafas de mel pra ver se vende.
– Chamar painho, mainha? Tião não tá brincando?
– Tião tá morto, Brija. Corre lá!
Brija só lembrava de ter visto a morte quando Dona Cininha morreu de velhice no ano passado, pelo menos era a única vez que ela lembrava de ter visto alguém morto. Foi perto de seu aniversário de 5 anos e ela achou que era uma coisa nova alguém morrer quando outro faz festa de vidas, ela tinha ganhado uma bonequinha Susi tão bonita que Seo Doro comprou com os mascates pra ela. Mas Tião podia morrer tão novo? Ela contava os 17 anos que ele fez quando comemoraram a Páscoa e ainda nem tinha chegado o Corpus Christi, como que Tião já podia estar morto? Se fosse brincadeira, dessa vez ele estava passando da hora.
– Seo Alixand! Ô, Seo Alixand, pai tá aí?
– Entra, Brija, Seo Doro tá mais o doutor tomando café lá no quintal.
– Tá bom então, Célinha, tô entrando.
– Pai? Pai, mainha tá chamando o senhor correndo.
– Que foi Brija?
– Ela disse que Tião morreu, mas eu acho que ele tá brincando.
– Morreu?! Aonde foi isso, Brija?
– Lá perto do poço.
– Doutor Alixand, o senhor me acode? Os mel fica pro senhor.
– Bora lá, Doro! Corre!
Brija entrou no carro de doutor Alixand junto com Seo Doro e ficou calada, o pai parecia que não acreditava que podia ser uma brincadeira. E se não fosse mesmo? Tião morto era coisa certa? Deus podia? E gente nova morre toda hora, de coisa besta como queda caída errada? Quando chegaram em casa, Dona Mina já tinha colocado Tião estirado no sofá. Ele continuava com o susto na boca, mas parece que ela tinha fechado os olhos dele.
– O quê que é isso, Mininha?! Que desgraça é essa?
– Tião tá morto, Doro!
– Deixa eu examinar ele, Dona Mina, pode ser só um desmaio demorado.
– Tião tá morto, doutor Alixand! Eu já busquei de ouvir o coração dele. Tá calado, morto.
– Faz mingau de fubá, Mininha! Corre! É assim que se levanta quem tá escorando na morte na hora errada.
– Tião tá morto, Doro! Tá morto! Seu fi, meu fi, nosso fi. Morto!
– Ele não tem mais pulso mesmo, Seo Doro. Eu sinto muito.
– Que é isso, doutor Alixand?! Que é isso que o senhor tá me dizendo?
– Brija, você viu o que aconteceu?
– Eu vi, doutor Alixand. Tião tropeçou no pedacinho de lajedo que tem perto do poço e caiu esquisito, meio de lado e meio de costas, tava correndo pra ver até onde o avião ia.
– Seo Doro, Dona Mina, ele deve ter fraturado o pescoço na queda. Infelizmente, quando é assim, não tem jeito.
– Que desgraça de morte besta, sem hora! Que desgraça! Meu filho novo, novinho! Que desgraça!
Brija sentou no chão, beirando o sofá, segurando sua Susi numa das mãos. Com a outra, pegou na ponta do pé de Tião, a ver se ele ainda podia sentir cócegas e acordar. Passou a unha no peito do pé do irmão, onde ele sentia mais os incômodos. Tião não falava nada, continuava com a boca aberta de susto, morto, estirado no sofá. Nunca mais ela sentava no sofá, podia até ter vontade, mas continuava em pé ou sentava no chão, como agora, mas não no lugar onde o irmão não quis mais brincar de caçoar dela. Dona Mina, quando não gritava perguntando a Deus o porquê, não sabia por onde começava a tratar o corpo do filho. Seo Doro saiu em lágrimas com doutor Alixand pra ir encomendar caixão e chamar o padre pra rezar o filho, ia enterrar no quintal mesmo, dentro de casa, era assim que os antigos faziam com os filhinhos pequenos que não tinham idade para ir pra longe. Tião não tinha idade pra morrer.
Quando chegou a hora do velório, parecia que o povo todo de Cascalho tinha encontrado a casa de Brija de uma vez só. Todos com cara de tristes e lamentando a hora errada que Tião tinha morrido tão novo. Quem não chegou de carro, estava de cavalo, era dia de semana e muitos saíram dos serviços pra poder ver Tião na roça que eles moram. Mais do que no aniversário dele, que só foi gente da família.
– Ô, Brija, Tião te contou?
– Que foi, Vitin?
– Da mulher da praça?
– Que mulher?
– No sanjuão de Cascalho, quando o prefeito fez a quadrilha na pracinha, tinha uma mulher que lia as mão. Uma tal de Cortêza, não sei que diacho de nome é esse mas era. Pois Cortêza leu a mão de Tião, sem ele querer, ele tava passando e ela puxou.
– E esse trem de ler mão presta?
– O padre diz que não.
– Como que lê mão?
– Eu não sei não, Brija, mas parece que essa Cortêza disse pra Tião que ele ia morrer caído de avião.
– Mas dá pra ver isso na mão, Vitin? Dá pra ver quando a gente vai morrer?
– Eu não sei não, Brija. Mas Tião fez graça, disse que nem tinha como morrer assim, porque ele nunca que ia entrar num avião. Primeiro porque não tem avião ne Cascalho e mesmo se tivesse, Tião disse que não tinha coragem de andar assim no alto.
– Ô Vitin, parece até que o cimento tá fundando comigo no chão.
– Pois ela disse caído de avião, Brija, essa Cortêza que lê mão e leu a de Tião.
– Vitin, não lê minha mão não…
– Eu não sei disso não, Brija, eu nem quero, o padre não crê.
– Ô, mainha… Ô, mãe!
– Ô, Brija, minha fia, chora o que tiver pra chorar hoje... Você é criança demais para sofrer de lutos.
– Ô, mainha! Tião não morreu de brincadeira... Foi uma Cortêza que matou Tião, mainha! A mão dele tinha coisas, ela viu..
— H. Conrado
Outros experimentos de Fruta Doce:
O que li no Substack alheio e gostei demais da conta:
POV: você deixou de ser fubanga (a
relata sua experiência em uma comunidade de “beauty privilege” e faz uma análise da influência do digital no comportamento de mulheres afetadas pelo culto à beleza. É o melhor conteúdo sobre o assunto que você vai ler esse ano, confia!).A história obsessiva do meu pai com Sandy & Junior (mais um puta texto bom do
sobre as relações familiares e seus silêncios).- faz uma reflexão sobre como nos relacionamos com o tão precioso tempo que gostaríamos de ter para dedicar à criatividade. Foi depois dessa leitura que escrevi “Brincadeira sem hora”, pois foi um tapão na minha cara).
Lindo, amiga! É sempre uma delícia ler seus experimentos aqui, tudo sempre costurado com tanto carinho e cuidado. Obrigada pela indicação!