Nem quando a fumaça da coivara toma conta do ar eu me esqueço do cheiro de Zita, do cabelo anelado e da boca cheia. Uma mulher só é capaz de deixar nublado o céu de uma vida inteirinha. E eu ainda nem era homem quando adivinhei pela primeira vez as pernas dela, a curva que fazia a polpa nas beiradas da saia e os peitos apontando o sentido das coisas por debaixo da blusa. Me enrijeci de dentro pra fora, sem saber pra onde ir: é como se eu vivesse para sempre dentro dessas horas que achei ela no mundo.
A janela do meu quarto dá pra um pé de aroeira seco, que já há muito tempo não brota uma folha, onde um anu-branco se hospeda e canta na hora primeira da alvorada. Desde uns dias que ele não faz um canto igual aos de antes, parece que ficou cansado, quando é que um passarinho sabe que tá velho? E quantos anu-branco nasce e morre por essas bandas, desde que essa aroeira era verde e ainda dava semente, e eu nunca dei por falta? Não é agora que vou acender vela e rezar terço. Também desde uns dias que não me abre o apetite, que mastigo à força um pedaço de mandioca pela manhã pra não passar o dia de barriga vazia. Eu tenho mãe viva que mora ali pra cima, perto do Espinhaço da Onça, mas não faço a vez de ser homem grande que dá serviço pra mãe velha, não vou atrás chorar mingau. Com pouco a secura passa e eu volto a mastigar arroz e feijão duas vezes no dia.
De manhã cedo, quando só tem a casa vazia, os bichos e a terra pra cuidar, eu penso como que devia ser boa a vida se Zita ainda vivesse. Não precisava nem ser perto de mim, desde que eu soubesse que ela ainda existe quente em cima da terra, comendo andu verde e dizendo que é doce – assim já bastava pra uma saudade que tem esperança. Agora não tem nada. Quando ela partiu menina, depois que o veneno de uma cascavel foi deixando ela sem ação e sem palavra, eu ainda nem era homem e pensei que uma hora eu achava outra mulher, que a vida era assim mesmo: todo mundo nasce, vive, reclama e morre. Mas eu fui só me sobrando pra reclamar o que eu queria viver com ela. Nem com 57 anos eu me esqueço da vontade que eu ainda tenho de poder cheirar Zita, cheirar atrás da orelha dela, as dobras do braço, entre as pernas, o corpo todo redondo e largo. Com outras mulheres eu nunca tive vontade de cheirar nada, só de derramar pra fora meu veneno de homem. Também nunca trouxe ninguém pra dentro de casa, se a solidão quis criar um caso comigo ela me achou na hora boa, quando a gente ainda não é grande pra entender que às vezes a vida é igual chuva: falta na hora que precisa e sobra quando a terra tá boa pra plantar, arrasando tudo, e depois, quando a estiagem chega, a gente tem que juntar força pra roçar de novo o que sobrou de semente. Eu não sabia que a vida é semear. Deixei a tristeza toda ir criando raiz dentro de mim, o sonho virando cimento em cima da terra, anulando a força das coisas boas que ainda podiam brotar. Eu mesmo me tornando e sendo um viúvo de sonho.
Agora, por essas horinhas que o dia vai acabando e não tem muito mais o que fazer, eu vou deixando o céu escurecer até me bater a vontade de dormir. Gosto de banhar pra deitar fresco e limpo, como se ainda existisse a vez dela vir se juntar comigo na cama. Tem noite que eu escuto ela caminhando pela casa, arrastando a sandália no chão, fico esperando ela abrir a porta do quarto, mas ela nunca entra. Eu já falei: pode vir. Mas ela nunca entra. Hoje eu vou deixar a porta aberta.
Apaguei a luz e deixei a janela meio encostada, pra ver se ventava pra dentro. Hoje eu não quis nem lençol, fiquei no pelo das coisas, porque em outubro até o vento aqui nesse norte do Jequitinhonha já é quente e parece umas baforadas. Deitei, dei fé que tinha mesmo só engolido um pedaço de mandioca o dia inteiro, mas não fiz menção de me levantar pra comer. Me esforcei pra não pegar ligeiro no sono, queria ver se escutava ela chegando, se vinha pela estrada da cancela ou se subia lá de trás, pelo rio. Tinha uns grilos que cantavam do lado de fora, mas eu ainda fiz força pra escutar por cima deles. Mas a noite parecia sem assunto, sem querer conversa. Rolei umas cinco vezes pela cama e achei que nessa noite ela não vinha, só porque eu queria demais. Peguei no sono levemente e ainda despertei umas duas vezes antes de ouvir que ela chegava. Achei que a banda esquerda do meu rosto começou a formigar quando escutei os primeiros passos dela pela casa. Pensei que era eu voltando a ser menino, corando a cara e enrijecendo o corpo. Pelo andado, entendi que ela chegava já perto da entrada do quarto. Tentei me aprumar na cama, mas vi que perdi o jogo do braço e da perna esquerda, minha boca não obedeceu quando eu quis reclamar alto. Tentei de novo me virar pro rumo da porta e não consegui mais enxergar o quarto direito, não vi janela, tudo pareceu orvalhado. Senti os passos mais próximos e não consegui achar minha alegria, fiquei desesperado imóvel, incapaz de abrir os braços pra ela. O sol começou a nascer e não ouvi barulho de anu-branco nenhum.
— H. Conrado
foda demais!!!