Meus mortos não costumam me dar trabalho
Isto não é uma crônica nem um conto, é um texto sobre o que é
“Meus mortos não costumam me dar trabalho” – rascunhei essa frase em algum momento do primeiro mês de luto pela morte do meu pai. Talvez fosse uma indireta para ele, que, quando vivo, sempre achava um jeito de me acertar o mindinho do pé (deve haver alguma palavra em alemão que descreva essa dor lancinante e, ao mesmo tempo, inócua: ela nunca é suficiente para nos lembrar de ter mais cuidado na próxima vez). Ou apenas um pedido, meio imperativo, do tipo: agora que está morto, comporte-se.
Mas a verdade é que, desde então, meu pai tem sido plena serenidade: morreu como escolheu, à beira de seus excessos, com os rins e o fígado reclamando todas as saideiras que ele encarou ao longo da vida sem nunca manifestar nenhum arrependimento. Não deixou dívidas, apenas três viúvas que se mantiveram fieis à guerra fria instaurada pelo bel-prazer desse homem que nunca disfarçou suas ambições poligâmicas. Tudo certo e definitivo.
Olhando brevemente para mim, sinto que remocei. Meu pai parou de pesar sobre meus olhos como um véu de indecência. De repente, parei de me sentir vigilante para que eu não me tornasse a extensão dele (embora nem sempre eu tenha conseguido me manter em vigília, diga-se, sempre há alguém para me lembrar de que sou a-cara-dele-em-tudo: veja só, até as unhas e o impulso de abrir uma cerveja a qualquer hora).
Para meu analista, eu disse isso de maneira menos prolixa e floreada: pois é, Paulo, parece que meus traumas estão mais leves.
Não existe mais essa baliza imoral que fazia com que eu me sentisse errando em tudo – ou repetindo o que ele era. De repente o sexo me pareceu só uma coisa minha, particular, absolutamente natural e permitida – meu pai foi um homem movido definitivamente pelo desejo e, por isso, morreu alcoolátra com uma lista interminável de amantes. Para mim, exercer a sexualidade sempre foi como ter um diabinho pousado sobre meu ombro sem a justaposição de um anjo. Terrivelmente cristã, sim. Mas essa abstração do erótico concomitante ao luto só é pois “incorpóreo é o desejo”1.
A morte só deixou ao meu pai um contorno bem-humorado de suas ações: meus irmãos e eu nos lembramos e rimos, sempre repetindo a frase “como é que pode? painho não tinha jeito mesmo”. E daí, parece que, ao menos para mim, meu pai concluiu-se. Assim, no sentido mesmo de acabar. Não sei se este tipo de chave só se vira tendo a morte adiante – ou o luto para mudar a dimensão das coisas. Mas o que acontece é que, agora, parece haver um limite entre o que ele foi e o que eu ainda posso ser.
Quando falamos de luto e morte, há sempre um especialista ou um poeta para dizer que quando alguém morre, um pedaço da gente vai junto. Que bom que para mim morreu só o que parecia ser ruim. Ficou meu pai sorrindo, pesando como uma borboleta sobre a extensão do que eu sou (qualquer psicanalista sabe que estou enganada nesse ponto, mas quem se importa?). Meus mortos, então, continuam a não me dar trabalho: só mesmo a missão de continuar a viver.
“Mas não tem revolta não / Eu só quero que você se encontre
Saudade até que é bom / É melhor que caminhar vazio
A esperança é um dom / Que eu tenho em mim, eu tenho sim”
– Sonhos (Caetano Veloso)
– H. Conrado
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Último verso do poema “Do Desejo”, de Hilda Hilst.
Meu pai faleceu há 2 meses e 22 dias. Me enxerguei muito nessas palavras. Pai também se foi com seus excessos mundanos. Como na música É disto que o velho gosta, meu pai gostava de música, mulheres, cerveja, churrasco. Meu pai fumava bastante, meu pai viveu do jeito que quis, partiu jovem, e com um final lento e ao mesmo tempo rápido (8 meses) de sofrimento intenso. Eu não esperava que fosse ser como foi. Nunca imaginei que íamos terminar os dois revendo nossa relação de amor e distância, atrelados a uma doença tão triste como a demência alcóolica, que exigiu de mim tempo e discernimento pra entender o que estava acontecendo. E que só com sua morte fui entender o porquê da vida ter colocado ele no meu colo, pra cuidar sozinha, embora não fosse filha única. Quando ele deixou o mundo, me deixou aliviada, e com aquele ponto de exclamação de: Fiz minha parte. Mas sobretudo de: Ahhh então foi por isso...
Acho que foi bem assim, ele se foi, e não me exige mais. Foi um final estranho, mas absolutamente autoexplicativo. Obrigada por seu texto, Hysa!
Lindíssimo! Parabéns por essa delicadeza tão agradável de se ler!