Vou começar este texto pelo que importa: eu estava feliz e sabia. Era setembro, e aí já é verão para quem mora de Guimarães Rosa pra cima, com bastante sol e nenhuma trégua. Para melhorar, ainda era o ano do penta, painho e mainha tinham reatado— não durou muito, mas tinham — e o destino era Salvador.
Cinco pessoas num Monza azul-marinho quatro portas, ouvindo Amado Batista por mais de 10 horas numa estrada que é basicamente aquela instrução de mineiro: segue reto toda vida e quando tiver que virar, é porque já chegou. No toca CD, uma anunciação: “meu ex-amor, tem coisas que a gente não esquece”.
Com uns dias de praia, mainha perdeu a prótese que usava nos dentes da frente. Inventou de sorrir dentro do mar, não aguentou. Ali, ela nem tentou disfarçar nenhuma de suas alegrias particulares de mulher. Não julgo, na época eu também sorri com a mesma falta de dentes, pois ninguém passa pelos seis anos sem experimentar uma janela.
Perdemos um dia de praia, mas numa cidade grande como aquela mainha não demorou para ganhar dentes firmes. E tinha a questão do acarajé. E, depois, a mordida em condições até melhores. E tinha mainha vermelhinha de insolação. Uma mulher crente, com um medo de macumba que só Deus sabe, e um tanto de barraca de acarajé bem na Bahia.
Quem visse de longe, podia até pensar que era um pecado ao quadrado: uma crente assim, com a boca melada de dendê, ela dizendo que fazia oração antes da primeira mordida porque assim não tinha perigo, que aquilo era um trem bom demais, sua comida preferida da vida, impossível viver sem.
Eu não sei quantos ela comeu durante a viagem inteira. Mas foi bonito demais — adivinhou, também, Amado Batista no som do carro. A gente voltou pra casa com um filme inteiro pra revelar, marquinha de biquíni, saudades para uma vida, mainha satisfeita de acarajé e isso tudo dentro de um Monza azul-marinho quatro portas com cinco pessoas dentro. O verão ainda estava para chegar, tinha a primavera inteira pra sorrir. Então, vou terminar esse texto pelo que importa: a gente foi feliz e sabia, sim.
— H. Conrado
Que delícia!!