“O que lembro, tenho.” – Grande sertão: veredas (João Guimarães Rosa)
o tempo existe em todas as coisas, mas na velhice parece que ele se senta e estica as pernas, boceja e diz que mais tarde continua e às vezes se esquece de voltar – é disso que tenho medo. houve um momento em que entendi que só conheço minha avó de cabelos brancos. quando nasci, ela já tinha 62 anos, os fios grisalhos e a pele marcada por imensos caminhos que ela desdenhosamente chama de “pelancas” – não há rugas onde as mangas da blusa cobrem, porque são os lugares onde o sol nunca tocou: pele de sertão cansado. também houve um momento entre os meus primeiros 10 anos de vida que entendi que amo minha avó. entendi essencialmente. visceralmente. absolutamente. depois disso, tudo o que vejo do tempo me assusta. hoje ela tem 90 anos de pura lucidez e uma firmeza vacilante – nos dias em que o tempo ataca, ela se cansa, mas depois volta a se comportar como uma menina malina que não gosta de obedecer ordens. come pimenta todos os dias e toma o omeprazol com um gole de café. há cerca de cinco anos venho sentindo uma necessidade ansiosa de fazer acordos com o tempo, ou de correr contra ele como se fosse possível avançar pela vida sem que ela passe. e como é isso? gosto de caminhar de mãos dadas com minha avó, sentindo seus dedos grossos e a pele quente. quando estou com ela, não tolero distrações e me culpo se me perco desse propósito e respondo alguma mensagem no celular. mas como é isso? não gosto de tirar os olhos da minha avó. o que lembro, tenho – reflito. gosto de olhar enquanto ela come. gosto de olhar enquanto ela ri. gosto de olhar enquanto falo algo e seu rosto muda junto com as minhas palavras. quando estou com ela, não gosto de viver as horas sem registrar incessantemente sua presença no mundo e na vida. e como é isso? se estamos em silêncio, cutuco com alguma ideia besta para que eu possa ouvir sua voz. invento problemas para que ela reflita soluções. relembro histórias engraçadas para que ela possa dar a mesma risada outra vez, ainda melhor, redobrada. passo as mãos nos seus cabelos cada vez mais ralos e guardo a sensação de parecer botões de algodão quando estão brotando no pé. cheiro ela. constantemente a envolvo em meus braços e a sinto cada vez mais miudinha. minha avó imensa em minha vida e nos meus braços ela miúda como se o tempo tentasse resumi-la às coisas cósmicas: tudo o que é imenso no universo começou miúdo como uma partícula. faço centenas de fotos da minha avó todas as vezes em que estamos juntas. tenho fotos dela comendo, andando, dormindo, sorrindo, massando biscoito, lascando lenha, cortando carne, lavando roupa e olhando para o céu. e também fotos dela ao lado do sabugueiro porque um dia, já acostumada com a câmera, me disse: ô zabella, tira um retrato meu nas fulô do sabugueiro. a única coisa que não faço mais é dormir ao lado dela. eu amava dormir com a minha avó todas as vezes que chegava para as férias em sua casa, mesmo depois de adulta mulher feita grande dona de casa. mas não consigo mais. das últimas vezes passei a noite em sobressaltos concentrada no ritmo de sua respiração: eu não queria perder nenhum suspiro, nenhuma vez que seu abdômen subia e descia para completar o rito de respirar. estou presa nessa ideia de vencer as horas – sem saber quantas horas eu mesma tenho no mundo. quando termino de beijar a minha avó penso que não a beijei segundos suficientes para tê-la comigo na lembrança. e volto a beijá-la. e volto a sentir a fraqueza da memória me apontando que as coisas são, enfim, apenas o antes e o depois delas mesmas. o agora é agora e já terminou de passar. o que lembro, tenho?
— H. Conrado
Mais de minha avó em mim:
— Jandaia
— Radinho
— A Cilada
Meu Deeeeus, paaaaara, tô lendo seus textos em sequência e posso contar quantas vezes meu coração apertou, pulou, tremeu… que saudade da minha vó 🥹 ainda bem que tenho muita lembrança pra me abastecer ❤️ aproveita muito a sua, elas são nossos tesouros. Todo avô e avô que vejo, sinto que são um pouco os meus ❤️
fiquei muito emocionada, muito lindo