De onde venho, nos dias de muito calor, fazemos o que é de costume quando nem o ventilador resolve: nos deitamos espalhadas pelo chão da casa, tentando trazer para a carne quente o frescor da cerâmica. Num desses momentos, enquanto a gente ria e encarava o teto, minha avó, com uma voz muito sentida, revelou um instante de infância na sua velhice.
– Ê, diá… De vez em quando me dá uma saudade de Jandaia.
Por um momento, ninguém entendeu do que se tratava, se Jandaia era gente ou qualquer outra coisa. Ninguém sabia de nada, nem mainha e minha irmã muito menos.
Mas aí ela disse que, quando menina, teve uma cachorra de estimação que se chamava Jandaia. E de repente todo mundo riu, riu demais, mas não de deboche. Dona Almita contou dos momentos que viveu com a vira-lata e pelo jeito que falava, parecia remexer uma fruta doce na língua enquanto saboreava a lembrança correr por mais de 80 anos no tempo.
Mesmo mantendo o facão sempre desembainhado, não é difícil imaginar que um dia Dona Almita também foi criança. E que brincou até cansar com Jandaia, correndo pela beira do rio, machucando os pés nos cascalhos, ou entranhando-se mato adentro deixando as vassourinhas riscarem suas canelas magras.
Vó tem uma cara felina, uns olhos verdes que facilmente poderiam compor o semblante de uma onça que esquadrinha os mistérios da mata. Ela também é miúda e a cada dia que passa, a velhice trata de deixá-la ainda mais miudinha.
Mas, apesar de felina, vó não poderia ser uma gata porque, ainda que miúda, não é sutil. Pisa apressado e não consegue disfarçar o ruído do facão enferrujado riscando a terra atrás de si. Não que ande armada, não é isso: ela corta é com a boca.
Seu carinho pode pesar assim como um tapa. A rudeza é herança do roçado que deixou suas mãos grossas e dedos com nós tão pronunciados, que os anéis encontram dificuldade para vencê-los. O esmalte cintilante em camadas grossas sobre as unhas, algumas mutiladas, é o que se encarrega de alinhar a delicadeza ao gesto.
Durante muitos anos, quando queríamos sentir felicidade, repetimos essa frase: “ai, que saudade de Jandaia” — e todo mundo voltava a rir e se envolver por uma sensação de inocência, um calor no peito e leveza na cabeça. Foi assim que a gente conheceu Jandaia e também passou a sentir saudades dela.
— H. Conrado
Meu paçoca, um vira lata caramelo, já tem 10 anos. Ja morro de saudades dele... Entendo a saudade da vó