minha mãe tinha um vestido azul royal todo estampado de ararinhas vermelhas e azuis, eu achava a coisa mais bonita quando ela prendia o cabelo num rabo de cavalo e usava esse vestido. e um dia de repente eu comecei a achar minha mãe feia. eu tinha uns cinco anos e comecei a sentir que achava minha mãe feíssima. e isso me fez crescer uma angústia tão grande, como pode uma criança achar a mãe feia. em alguma igreja isso devia ser pecado. e minha mãe sempre belíssima, lindíssima, e eu uma criança achando tudo o que ela fazia muito feio. e eu fui ficando com um dó da minha mãe. um dia eu disse a ela já muito arrependida antes de dizer: mainha desculpa mas eu acho a senhora feia. eu tinha cinco anos e meus pais já tinham se separado duas vezes. e minha mãe parecendo feíssima mesmo com o vestido azul que eu achava lindo. e por muito tempo eu fiquei achando minha mãe feia e dizendo isso pra ela sempre que ficava insuportável demais. mainha eu te acho feia me desculpe.
depois de já ter feito 25 anos eu tive uma angústia horrorosa no meio do dia quando entendi que naquele tempo não achava minha mãe feia coisa nenhuma. na verdade eu só não soube dizer como ela estava feia enquanto sofria pelo meu pai. mãe a senhora está feia pare de sofrer por este homem. mas ao invés disso eu só dizia mainha, desculpa, mas eu te acho feia. e com 25 anos, já me entendendo meio mulher, eu mandei mensagem pedindo desculpas pra minha mãe e explicando que eu não a achava nada feia, que ela sempre foi belíssima, lindíssima, mas que eu não gostava de vê-la triste. e eu comecei a pensar meu deus minha mãe sofrendo por tantos erros que me meu pai cometeu com mulheres horrorosas e eu dizendo mãe, a senhora é feia. me senti uma criança horrível, eu adulta me sentindo uma criança desprezível que acha a mãe feia e ainda tem coragem de dizer. não sei o que aconteceu com o vestido azul royal estampado de ararinhas que eu achava belíssimo. tenho quase certeza de que é por isso que o azul se tornou minha cor favorita agora que sou mulher.
— H. Conrado
esta é uma nota para você que chegou agora: as coisas não costumam ser tão tristes por aqui, em breve as resenhas voltam e as crônicas bem-humoradas também. por enquanto, sigo como canta Maria Bethânia: “chorando eu refaço as nascentes que você secou” — ou: escrevendo eu refaço as palavras que secaram em mim.