Antes de começar, é bom dizer: este pitaco passou por uma autoavaliação. Quando iniciei a leitura de “Um prefácio para Olívia Guerra”, eu estava azeda (é como costumo me definir nos dias ruins) e saindo da tal ressaca literária causada por outro livro. Isso fez com que eu arrolasse uma antipatia pelo texto de Liana Ferraz logo nas primeiras páginas. Mas, calma! A nuvem cinza se dissipou graças ao meu hábito de não desistir de nenhuma história.
Aos poucos, confesso, peguei gosto e consegui entrar no ritmo – que é bastante melancólico, diga-se. É um texto sobre o peso da vida e como isso pode ser insuportável para alguns. Então, um alerta: “Um prefácio para Olívia Guerra” é um livro sobre suicídio e depressão.
A premissa é a seguinte: aos oito anos, Maristela Guerra vê a mãe Olívia Guerra se jogar da varanda do apartamento onde moram. Acontece que, até o momento de sua morte, Olívia era uma escritora frustrada, uma mãe e uma mulher que se sentia constantemente inadequada. Depois de sua partida, no entanto, o mundo se encanta por sua obra e ela se torna, finalmente, uma artista celebrada.
Ainda criança, Maristela se vê encarando o resto da vida tendo a morte como seu ponto de partida. É este desenho fúnebre o tema motriz da história. Olívia, ao que parece, só faz sucesso porque morre e a tragédia confere à sua obra o drama e o peso que a vida não era capaz de oferecer. A filha permanece presa ao voo da mãe e se torna a curadora responsável pela obra da artista fatal-sublime-genial-e-para-sempre-morta.
Adulta, Maristela é convidada por um editor para escrever um prefácio especial para mais um lançamento póstumo em nome da mãe. Então, entrega uma carta-desabafo para todos os fãs de Olívia Guerra que insistem em tratá-la como uma presença permanente, enquanto a criança-Maristela sabe que a mãe é uma eterna partida.
“Ela estava triste e doente. Morreu triste e doente à tarde e havia lavado a louça pela manhã. Sei que o senhor está em busca de histórias fortes. Pois entrego em mãos. Não tenho mais como perder minha mãe. Está perdida e despedaçada.”
– Um prefácio para Olívia Guerra (Liana Ferraz)
O que fica de quem fica?
Um dos principais pontos de descontentamento de Maristela é como o nome e a morte da mãe viraram produtos de consumo estampado em canecas, camisetas e em dezenas de obras póstumas editadas por pessoas que sequer a conheceram ou entendiam a sua tristeza. Parece um pouco com aquela conversa sobre a imagem da Frida Kahlo ter virado capinha de iPhone enquanto ela é celebrada como um ícone anticapitalista. O tal esvaziamento.
Mas todo esse contexto fez com que eu me lembrasse de outro filho de mãe-artista-morta: João Marcello Bôscoli, filho de Elis Regina e principal detentor de sua obra.
Após a polêmica envolvendo o comercial da Volkswagen, em que a cantora ressuscita por meio de inteligência artificial e canta ao lado de Maria Rita, também sua filha, João deu uma entrevista para a revista piauí e alguns trechos do livro me levaram a esse paralelo.
“Se Elis morreu de súbito para um país inteiro, aos 36 anos de idade, ela se foi aos pedaços para João Marcello Bôscoli. O silêncio dos dois dias em que ele narra ter sido deixado só no apartamento da Rua Melo Alves, nos Jardins, o mesmo em que a mãe havia sido encontrada inconsciente depois de ingerir uma mistura de efeito imprevisível, cocaína com bebida alcoólica, era apenas o anúncio de uma tempestade particular.”
– Trecho de “Na regência de Elis Regina”, entrevista de João Marcello Bôscoli para a revista piauí (Texto de Julio Maria)
A artista genial eternizada pela morte. Já sua família e seus laços de intimidade, um apêndice dolorido que, a qualquer momento, pode ser retirado e esquecido pelo grande público.
Assim como João, Maristela também enfrenta uma crise familiar, passa a viver apartada do irmão mais velho, que vai morar com a avó, mãe de Olívia, e encara o desmantelamento da figura do pai. Todos eles para sempre presos no instante da partida.
“e eu,
destruída como se
fosse eu
o corpo sempre em queda.”
– Um prefácio para Olívia Guerra (Liana Ferraz)
A carapuça serviu
Em um dos momentos do livro, Maristela recebe uma jornalista em casa para uma entrevista sobre a mãe. Foi aí que me senti cutucada com vara curta – aquela que machuca, porque quem cutuca está próximo e pode empregar mais força. Eu, também jornalista, fui atingida pelo traço mais mesquinho desta profissão que, vez em sempre, gosta de chutar cachorro morto quando o corpo ainda nem esfriou.
A jornalista vasculha Maristela à procura da dor e, claro, a encontra transbordando por todos os poros. Não tem dó e faz questão de espezinhar em busca da aspa perfeita.
“– Bom, a primeira pergunta que quero fazer é como você se sente prestes a completar a idade que sua mãe tinha quando morreu.
fiquei sentada olhando para ela. atônita. um bicho. um filhote disfarçado de grande. indefesa.
(...) eu não tinha pensado nisso.(...) dali em diante não teria mais minha mãe. minha referência. meu futuro. até os trinta, eu a tinha. primeiro mãe, depois amiga mais velha, depois irmã, depois gêmea. agora, uma nova morte: a morte do mapa do futuro.”
– Um prefácio para Olívia Guerra (Liana Ferraz)
Depois dessa parte, fiquei pelo menos meia hora nutrindo raiva por jornalistas. E não passou.
Como no trecho destacado acima, Liana Ferraz constrói a história alternando entre poemas e trechos do diário de Olívia, mas também permite que Maristela escreva seu prefácio seguindo a catarse do seu luto implacável. Então, temos uma narrativa entrecortada por parágrafos quebrados, versos e intersecções de fluxos de consciência com ações descritas como em uma peça.
Ao fim da leitura, fiquei me perguntando se deveria ler novamente, em um momento menos azedo da minha vida, para buscar novas impressões sobre livro e talvez achá-lo bom logo de cara. Mas minha relação com a leitura não é essa. Leio porque me ajuda a viver e não é possível me desvencilhar da vida para isso, para nada. Então, sigo azeda.
Sobre a autora: Liana Ferraz é de Bragança Paulista, São Paulo. Além de escritora, é atriz. Publicou três livros, sendo o mais recente o de poesias “Sede de me beber inteira” (Planeta, 2022). “Um prefácio para Olívia Guerra” é seu romance de estreia.