“Pequena coreografia do adeus” e a ferida aberta
O livro que me deu a famigerada ressaca literária
Dificilmente leio a sinopse antes de começar um livro, prefiro a surpresa. Por isso, levei um soco no estômago assim que entendi a história que “Pequena coreografia do adeus”, de Aline Bei, iria me contar: a decadência afetiva de uma família e a bagunça dos estilhaços se espalhando e furando a carne dos seus personagens. Eu fiquei triste.
Quem narra essa ferida aberta é Júlia, a filha. Durante as primeiras 150 páginas do livro, ela ainda é uma criança aprendendo a ser gente entre o mar de desafeto e frustração que é o casamento de seus pais, Sérgio e Vera.
Quando esse relacionamento chega ao fim, ela fica com o pior: a colcha de ressentimentos da mãe, que a agride física e verbalmente todos os dias, e o abandono velado do pai. Por isso, um alerta: “Pequena coreografia do adeus” também é um livro sobre violência infantil.
“as surras que eu levava
eram as surras que a minha mãe levou
em looping
na minha pele, na pele dos meus filhos que ainda não tenho.
é o que chamam de carma ou: carregar uma pedra
involuntária no coração.”
– Pequena coreografia do adeus (Aline Bei)
Assim como no trecho destacado acima, o livro é escrito em um texto quebrado, com um ritmo incerto que não respeita pontuação ou construção de parágrafos, uma característica do estilo da autora. Mas é esse arranjo de narrativa que desenha o esburacamento do cotidiano sem afeto, cuidado e amor ao qual Júlia se acostuma e se constrói mulher.
Vera, a mãe, parece nutrir algum tipo de prazer sórdido em machucar a filha. No livro não fica claro, mas tive a impressão de que ela culpa Júlia (e a maternidade) pelo fracasso do seu casamento, ou mesmo pela falência dos seus desejos de mulher.
“Ela derramava
o seu óleo de insatisfação
pelo cômodos
formando um longo tapete
de Dor e Glória.
[...]
uma verdadeira Rainha
de um pequeno país em guerra que era o seu corpo não
amado
ou nunca amado do jeito que ela Gostaria.”
– Pequena coreografia do adeus (Aline Bei)
Grifei tantos trechos e fiz tantas pausas para refletir durante a primeira parte, que pensei na possibilidade de Aline Bei ter entrado na minha cabeça e encontrado a inspiração de que precisava para descrever a relação da personagem com o pai. Como neste trecho do diário de Júlia (única parte do livro escrita conforme a estrutura básica da prosa):
“O que me deixa triste é que meu pai me abandona muito. A minha mãe ele abandonou de uma vez, mas comigo é pior, ele fica me abandonando devagar.”
– Pequena coreografia do adeus (Aline Bei)
Esse abandono simbólico do pai que existe mas não está, que olha a filha mas não a vê, que fala com ela mas não a escuta, é descrito com uma sutileza cortante. Vou até cometer o excesso de destacar outro trecho (e a esta altura vocês já devem ter sacado qual é o assunto que meu analista costuma ouvir como um CD arranhado).
“eu só queria ter um pai que não fosse eternamente o
homem que deixou a minha mãe.”
– Pequena coreografia do adeus (Aline Bei)
Passado o assombro pela minha identificação com essa relação entre pai e filha, à medida que Júlia crescia e se tornava mulher, senti que a autora perdeu o ritmo do texto e, pouco a pouco, algumas alegorias e recursos narrativos passaram a me parecer fora de tom.
Ao mesmo tempo em que a personagem era embalada pela rádio USP ou havia a ideia de uma “novela das oito” passar na TV, por exemplo, desenrolava-se também um cenário em que o blues e um pub eram tidos como lugares comuns desse cotidiano, como numa atmosfera inglesa que, para mim, pareceu totalmente desconexo.
Pode ter sido proposital, mas da metade do livro para frente a narrativa perde a profundidade que a autora construiu na primeira parte.
Por isso, ao invés de um pitaco, hoje tem uma confissão: estabeleci como meta para o primeiro semestre ler apenas literatura brasileira contemporânea, mas devo dizer que sofri de uma leve ressaca literária depois de terminar “Pequena coreografia do adeus”.
Assumir isso faz com que eu me sinta um velho branco metido a erudito, mas é a verdade que temos para hoje. Comecei a ler “Um prefácio para Olívia Guerra”, de Liana Ferraz, e ainda sinto o gosto da ressaca na boca.
Mas vou puxar a sardinha para dois outros livros de que já falei aqui, “Não fossem as sílabas do sábado” e “A cabeça do santo”, e que estão no meu top 5 livros favoritos desse ano. Cada qual com o seu gosto, né.
Sobre a autora: Aline Bei é de São Paulo. Fez sucesso já no seu romance de estreia, em 2017, quando “O peso do pássaro morto” venceu o prêmio São Paulo de Literatura e o prêmio Toca, além de ter sido finalista do Prêmio Rio de Literatura. “Pequena coreografia do adeus” é seu segundo livro e, em 2022, foi um dos finalistas dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura.