ameaços de pranto na retina
Inaugurei uma seção de crônicas tristes. Foi sem querer.
“Existe sempre uma partida
começando em ti
tomando forma
e sumindo contigo.
Existe sempre um amigo perdido
um encontro desfeito
e ameaços de pranto na retina.”
– Balada de Alzira XIII (Hilda Hilst)
Agora que minha irmã caçula trabalha em casa, ela deu para ficar medindo minhas tristezas, observando meus ânimos. Sem que eu perceba, ela capta qualquer esmorecimento no meu andar, parece um detector de angústias. O que você tem? Ela pergunta assim, do nada. Quando foi que ela aprendeu a me medir desse jeito? Normalmente sou eu quem a observa como uma coruja.
Hoje, enquanto eu colocava os lençóis para lavar, ela abriu a janela do seu quarto, que dá para a lavanderia, e me fez a pergunta sem nenhuma cerimônia. Mas o que poderia haver de diferente no jeito que eu colocava o sabão que pudesse denunciar minha angústia? Que cheiro ela sentiu? Embora a dor da otite se sobressaísse às outras, eu estava repleta de desânimos dos mais variados. Será que ela chegou na fase de me entender como alguém de carne-osso-e-sangue e não apenas sua irmã-mais-velha?
Menos de um mês após a morte do meu pai, fizemos uma festa em casa – já estava marcada há meses, muitos convidados, e pensamos que passar um momento rodeadas de amigos e familiares poderia nos fazer bem. E fez. Há anos não via minha irmã tão feliz, parecia uma criança, toda serelepe, uma pirilampa entre os adultos cantando no karaokê e fazendo coreografias na frente da televisão. Quando o último convidado foi embora e o restante já havia se acomodado para dormir onde era possível, fui tomar um banho e entrei em desespero. Eu havia ficado tão desesperada para servir, manter a mesa abastecida, o lixo vazio e as coisas nos seus devidos lugares que não me dei tempo de viver ao lado da minha irmã – preenchi todos os espaços do meu pensamento com tarefas manuais. Me senti derrotada pelo tempo perdido. Toda a alegria dela pareceu encapsulada em um momento que eu jamais poderia tocar outra vez.
De repente comecei a procurar fotos e vídeos em que minha irmã aparecia, queria perceber seu sorriso, ouvir sua gargalhada, ver se ela estava dançando de verdade ou apenas cumprindo seus protocolos de socialização (ela tem disso). Saí do quarto e fui bater à porta dela, que não ouviu, pois foi dormir exausta de tanto viver. Então eu chorei mais. Desci as escadas meio sem entender para quê e comecei a limpar a bagunça, lavar a louça, juntar as latas vazias – eu não queria me dar tempo para pensar, mas aí chorei mais. Não sabia dizer o que me escapava, tentava lembrar do sorriso da minha irmã e da sua imagem vivendo, mas tudo me fugia, a noite toda parecendo um borrão.
Chorei mais do que quando meu pai morreu – nisso demorei, levei alguns dias para chorar profundamente. Precisei proteger a minha criança antes de deixar o luto tomar conta do que restava da relação pai-e-filha. De lá pra cá não sei o que houve, mas minha irmã parece que me descobriu de novo, fica me esquadrinhando.
Quando recebemos a notícia da morte, já estávamos esperando. Sabíamos que seria naquele dia, acordamos com esse tipo de certeza inexorável. Não falamos nada uma para a outra, mas sabíamos. Quando a confirmação chegou, ela olhou para mim e apenas balançou a cabeça num sinal positivo, em lágrimas. Era 11h da manhã de um sábado, ela estava cozinhando e eu limpando a casa, não queríamos ficar paradas. Tudo na vida nos inquietava, a certeza da morte pesava as horas. Quando ela me olhou, larguei o que estava fazendo e fui abraçá-la. Ela disse: pode chorar. E eu respondi: cada um de nós vai reagir de um jeito, chora você, eu tô aqui. Será que ela ainda acha que vou desabar? Por acaso pareço um castelo de cartas?
– H. Conrado
“Aflição de ser eu e não outra.” – Sonetos que não são (Hilda Hilst)
“O não dizer é o que inflama
E a boca sem movimento
É que torna o pensamento
Lume
Cardume
Chama.”
– Cinco Elegias (Hilda Hilst)
“Aquela menina pura
ficou pétala fendida
flor com mil olhos de água
espantados e noturnos.”
– Balada de Alzira XVII (Hilda Hilst)
Outros textos de Fruta Doce:
O que li no Substack alheio e gostei demais da conta:
– Nada de Errado Nisso (Notas sobre o fim do mundo elaboradas pelo
e o para você ler enquanto pega fogo).– Chorar um Tejo (O
fala sobre o ato de chorar de maneira tão profunda que– Que legal isso que você fez! Devia botar para vender… (O
reflete sobre a tendência insuportável de monetizar tudo – tenha um hobby sem pensar em fazer dinheiro com isso!).– Os perigos de ser sequestrado pela sua audiência (O
traduziu o artigo “The Perils of Audience Capture”, que fala sobre como a internet é capaz de destruir nossa essência quando as métricas de audiência passam a ser mais importantes do que nosso modo de criar. É assustador.).Ilustração: Marion Fayolle (coloquei na descrição da imagem, mas nunca vai, devo estar errando em algo).