“A cabeça do santo” e a graça contra a miséria da vida
Neste livro encontramos o equilíbrio exato entre a dor e o riso
Este pitaco começa com um conselho: se você ainda espera algum tipo de sinal para iniciar a leitura de “A cabeça do santo”, a hora é agora. Este já é um dos melhores títulos que li esse ano e ainda estamos em maio.
Nesse livro, Socorro Acioli explora cultura popular, religiosidade, fé, mistério, loucura, amor e perdão com o equilíbrio exato entre a dor e o riso. “A cabeça do santo” é triste e engraçado, e nos acerta em um lugar íntimo, muito próximo de onde costumam chegar clássicos como o “O auto da compadecida”, de Ariano Suassuna.
A trama se desenvolve a partir da perspectiva de Samuel, um jovem que caminha durante 16 dias pelo Ceará para cumprir as promessas feitas para a mãe Mariinha em seu leito de morte.
Um dos destinos é Candeia, onde ele deveria acender uma vela para Santo Antônio e encontrar a avó e o pai com quem perdeu contato antes mesmo de nascer – e é aqui onde tudo começa. O rancor e a decepção em relação aos familiares é o que empurra o rapaz para a história que se desenrola a seguir.
Após chegar sujo, faminto, sem fé e sem dinheiro, o único lugar da cidade onde Samuel encontra abrigo é na cabeça gigante e inacabada de Santo Antônio, que resta abandonada após um erro tornar impossível a finalização da estátua construída em homenagem ao divino casamenteiro, que permaneceu como um decapitado em cima do morro.
O que ele não esperava é que, lá dentro da cabeça do santo, pudesse ouvir as preces de todas as mulheres que ansiavam dia e noite por um marido. Este dom, que ele considera um castigo, desdobra a narrativa para o encontro de personagens tão genuinamente humanos que nos fazem querer um capítulo separado para cada um deles.
A começar por Madeinusa, que recebeu este nome porque o pai “falava que coisa linda como ela haveria de ser importada, como o rádio que ele comprou [e] na caixa estava escrito: ‘Made in USA’”.
Ou ainda Meticuloso, o operário considerado de inteligência sem igual e o responsável pelo desastre na construção da estátua de Santo Antônio, fato que levou a cidade à ruína. Sem falar do garoto Francisco, que antes da chegada de Samuel usava a cabeça do santo para suas punhetas sagradas no fim do dia.
Só estes perfis foram suficientes para fazer com que eu me acabasse de rir enquanto lia no metrô de São Paulo – tanto que um rapaz me parou para perguntar se o livro era bom mesmo.
Mas Socorro Acioli não para por aí: depois que o mundo descobre o dom de Samuel, ele ainda tem de lidar com as enxaquecas de Santo Antônio, que, aturdido com tantas mulheres implorando para serem ouvidas, fica com a cabeça gigante e decepada vibrando de estresse.
“– Que sacrilégio! Santo Antônio está com enxaqueca!
Foi uma comoção. A cabeça do santo estava latejando mais forte do lado esquerdo, era isso mesmo, fazia todo sentido aquele tremelique.”
– A cabeça do santo (Socorro Acioli)
Assim, parece até que na história não há desgraças. Mas é que a autora compartilha o traço cômico daqueles que não aceitam a miséria como fim único da humanidade, não importa as dificuldades do caminho.
Socorro Acioli nos mostra tudo isso em 176 páginas, divididas em quatro partes – e talvez seja esse o único ponto negativo do livro. Quando “A cabeça do santo” chega ao fim, a sensação é de que paramos no ponto mais alto da história.
“Desgraça é tudo coisa de se rir.” – A cabeça do santo (Socorro Acioli)
Curiosidade: Socorro Acioli escreveu “A cabeça do santo” quando foi aluna de Gabriel García Márquez na oficina “Como Contar um Conto”, realizada em San Antonio de Los Baños, em Cuba. O livro foi lançado em 2014.
Sobre a autora: Socorro Acioli é de Fortaleza, Ceará. Já publicou mais de vinte livros, entre eles “Ela tem olhos de céu”, que recebeu o prêmio Jabuti de literatura infantil; a coletânea de poemas “Takimadalar, as ilhas invisíveis”; “A bailarina fantasma” e os romances “A cabeça do santo” e “Oração para desaparecer”.